quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Agora, entregar o que promete

Artigo de A.P. Quartim de Moraes publicado em O Estado de S. Paulo em 16/02/2010.

Auspiciosa a notícia da inauguração, no último dia 8, da Biblioteca de São Paulo. Plantada no Parque da Juventude, área onde funcionou até poucos anos atrás a tristemente lembrada Casa de Detenção do complexo do Carandiru, a Biblioteca de São Paulo propõe-se ao audacioso desafio de funcionar como um centro dinâmico de cultura, um modelo inovador de biblioteca tecnologicamente equipado para se integrar à comunidade, atrair leitores e promover o hábito da leitura. E, paralelamente, treinar profissionais para a rede de bibliotecas municipais e privadas (mais de 900) espalhadas por pouco mais de 600 cidades do Estado.


Esse é o importante serviço a ser prestado a São Paulo e ao Brasil pela nova unidade da Secretaria da Cultura do Estado. Mas outro serviço, certamente não menos relevante, a Biblioteca de São Paulo já prestou ao País: comprovou a agilidade e eficiência de um modelo de gestão que permitiu a sua instalação completa e sua inauguração em prazo inacreditavelmente curto para uma obra pública desse porte.


Tal qual já ocorre com a Casa das Rosas, o Museu da Língua Portuguesa, a Casa Guilherme de Almeida e o projeto São Paulo: Um Estado de Leitores (Spel), a Biblioteca de São Paulo está vinculada à organização social Poiesis - Associação dos Amigos da Casa das Rosas, da Língua e da Literatura, associação civil sem fins lucrativos que, nessa condição, está desobrigada de se submeter ao enorme cipoal de entraves burocráticos que regula, por exemplo, a licitação de obras na administração direta. Caso exatamente inverso, e tristemente significativo, é o da Biblioteca Municipal Mário de Andrade, a maior biblioteca do Estado e a segunda do País, superada apenas pela Biblioteca Nacional, que está há três anos fechada à espera de que a burocracia oficial se entenda sobre objetivos, custos e prazos de uma reforma há décadas reclamada, já muito bem concebida e planejada, mas que ninguém ousa prever quando será finalmente completada.


Não se pode comparar, é claro, de um lado, o porte de uma instituição como a Mário de Andrade, que reúne um acervo de cerca de 3,2 milhões de itens documentais num prédio de 22 andares, e, de outro, o tamanho da biblioteca estadual, com 4.200 metros quadrados e acervo inicial de 40 mil livros, CDs e DVDs (até porque esta última não se propõe a ser apenas, ou principalmente, um depositório de acervos). Mas a comparação entre os modelos de gestão aplicados na reforma de uma e na instalação de outra explica, para além de qualquer dúvida ou tergiversação estatizante, por que a Mário de Andrade está fechada há três anos, enquanto o projeto de criação da unidade estadual foi concebido e realizado em poucos meses.


Há menos de dois anos o secretário de Cultura, João Sayad, foi buscar na capital chilena o modelo da Biblioteca de Santiago, fundada em 2005 com a proposta inovadora de transformar o conceito tradicional de gabinete de leitura em centro dinâmico de cultura voltado para uma intensa ação proativa na captação de "clientes", especialmente o público jovem - e, consequentemente, no incentivo ao hábito da leitura. É claro que, como ocorre na de Santiago do Chile, na nova biblioteca paulista será possível também consultar e até tomar emprestados livros de um acervo que, inicialmente modesto, certamente crescerá com novas aquisições e doações. E a captação desse acervo deverá dar atenção especial a lançamentos editoriais mais recentes e bem-sucedidos em vendas, como parte importante da estratégia considerada mais adequada para atrair o público jovem. João Sayad costuma dizer que a Biblioteca de São Paulo "precisa parecer e atuar mais como uma livraria do que como uma biblioteca tradicional". E a arquitetura interna, associada à decoração da nova unidade, remete realmente à ideia de uma dessas modernas, amplas e coloridas megalivrarias que nos últimos anos passaram a conquistar espaço nos shopping centers, e não ao ambiente sisudo e silencioso de uma biblioteca tradicional.


Tudo muito bonito, colorido e promissor. Até pela natureza quase lúdica do trabalho que se propõe a desenvolver, e da agilidade para tanto que o modelo de gestão de uma organização social propicia, a visibilidade pública da nova biblioteca está praticamente garantida. Mas igualmente muito importante - embora certamente menos charmosa -, porque se bem-sucedida resultará na multiplicação dos efeitos positivos de uma ação cultural voltada para o livro e a leitura, será a tarefa de preparar profissionais para atuarem nas centenas de bibliotecas públicas e privadas que se espalham por todo o Estado. As municipais, principalmente, são em sua grande maioria absolutamente carentes de mão de obra minimamente especializada. E por isso a triste realidade é que não funcionam.


O quadro de funcionários de uma biblioteca, e não necessariamente apenas os atendentes, deve ser constituído, por definição, por profissionais preparados e dedicados à mediação da leitura. É verdade que nem mesmo nas grandes livrarias é fácil encontrar atendentes familiarizados com livros. É clássica, tanto quanto folclórica, a história do "livreiro" que, solicitado a ajudar na procura de Raízes do Brasil, de Sergio Buarque de Holanda, encaminhou o leitor à estante de agricultura. Mas o comércio varejista não tem obrigação - e, geralmente, nem vontade - de entender de livros. Já do poder público é razoável esperar que cumpra por inteiro as responsabilidades que assume.


Vamos torcer, portanto, para que a Biblioteca de São Paulo nos entregue tudo o que promete