quinta-feira, 30 de julho de 2009

Analfabetismos pós-modernos

Artigo escrito por José de Souza Martins publicado em O Estado de S. Paulo de 01/03/2009.

Na ponta do lápis: 75% dos analfabetos no País têm mais de 40 anos - Não chega a ser surpreendente a notícia de que 75% dos analfabetos no Brasil têm mais de 40 anos e o declínio do analfabetismo é mais lento nessa faixa de idade do que nas outras. Há particularidades sociais que ajudam a compreender esse dado lastimável. Os de mais de 40 anos são, no geral, os que têm menos estímulos para superar a situação em que se encontram. No Brasil, as pessoas envelhecem cedo. O marco dos 40 é para muitos o marco de uma idade de angústia e apreensão, do fim das oportunidades estáveis de trabalho. A dificuldade que essas pessoas encontram para mudar de emprego ou mesmo para arrumar um e a facilidade com que ficam sem trabalho é um conhecido fator de marginalização social já na maturidade. Que estímulo pode ter uma pessoa de 40 anos ou mais para se alfabetizar tardiamente se a probabilidade de conseguir um emprego compatível com sua história profissional é muito menor do que a de uma pessoa mais jovem? A discriminação e o preconceito etários no nosso mercado de trabalho são em si mesmos fatores de degradação social que dificilmente podem encontrar um antídoto na alfabetização tardia, que, por ser tardia e ser mera alfabetização, é cada vez mais insuficiente. Ser alfabetizado já não garante nada a ninguém.

A pós-modernidade é uma era de multiplicação das formas de analfabetismo. As estatísticas referem-se aos estritamente alfabetizados, aos que aprenderam a ler e escrever. Mas raramente há referência ao analfabetismo funcional daquela larga parcela da população que, ainda que sabendo ler e escrever, de fato não está alfabetizada porque está aquém do manejo minimamente competente da informação cultural, como a interpretação daquilo que lê. A alfabetização constitui apenas um dado formal. Ela só tem sentido num quadro de solicitações culturais em que saber ler e escrever é mais do que o ato em si. Na zona rural, encontrei, não poucas vezes, pessoas desalfabetizadas, aquelas que frequentaram e completaram o antigo curso primário rural de três anos e, passado algum tempo, desaprenderam a ler e escrever. Porque o desuso da alfabetização torna-a inútil. De outro modo, isso acontece também na cidade. Não é raro que a escola esteja completamente desvinculada das atividades culturais que lhe dão sentido, como a leitura, a freqüência a bibliotecas, museus e teatros. Hoje vivemos num cenário em que não é incomum a combinação de alfabetização e ignorância, a capacidade de ler e escrever reduzida ao uso elementar dos simplismos do cotidiano, aos quais a própria escola se submete, renunciando à missão de estimular os estudantes a níveis mais altos e mais complexos de conhecimento, superadores e críticos do cotidiano e do repetitivo.

O universo cultural do analfabetismo tem sido ampliado no último meio século, anulando com facilidade os ganhos da alfabetização tradicional da escrita manual e da leitura do texto impresso. O advento do microcomputador pessoal criou, em curto tempo, uma massa de analfabetos até mesmo entre pessoas com nível superior e até mesmo entre professores universitários. A linguagem computacional invadiu nossa vida como indecifrável língua estrangeira e nos colocou da noite para o dia à mercê de técnicos que se esmeram em falar o computacionês incompreensível. A máquina de calcular livrou-nos dos sofrimentos da tabuada, mas criou uma geração de ignorantes que faz cálculos sofisticados sem saber como são feitos. Saber escrever corretamente a língua portuguesa já não é necessário, pois programas instalados no computador corrigem automaticamente a maioria dos erros e permitem a qualquer semialfabetizado escrever quase com o rigor de Machado de Assis.

Enquanto nos países desenvolvidos os museus estão cheios de crianças e adolescentes levados pelas próprias escolas, aqui estamos muito longe disso, do mesmo modo que estamos muito longe do ensino em tempo integral, necessário para cobrir a extensa área de cultura que deve ser assimilada antes da idade adulta para que a pessoa se mova num patamar próprio das demandas culturais crescentes do mundo moderno. Nesse sentido, a insuficiência da nossa escolarização é um instrumento de alargamento do número dos que podem ser classificados na moderna e ampla concepção de analfabetismo, não limitada estritamente ao saber ler e escrever.

Mudanças técnicas na indústria tornaram o que era conhecimento profissional para uma vida um mero conhecimento para uns poucos anos, aquelas tarefas suprimidas e substituídas por outras, que pedem nova e diferente escolarização. A simplificação do processo de trabalho, por outro lado, criou tarefas que podem ser desempenhadas por pessoas com menor qualificação profissional e escolarização menor. Não é casual que se registre entre nós mais desemprego entre trabalhadores mais qualificados do que entre os menos qualificados ou sem qualificação. Portanto, a escolarização está sendo continuamente questionada pelo mercado de trabalho, o que torna a mística da alfabetização uma aspiração obsoleta.

O cenário de desestímulo à alfabetização é agravado por uma cultura nacional historicamente marcada pela valorização do analfabetismo. Sociedade que teve escravidão, precisava, até há pouco mais de cem anos, apenas do trabalho braçal do cativo. Foram raros os senhores de escravos que alfabetizaram e educaram seus escravos, conscientes aliás de que alfabetização é incompatível com escravidão. Na imigração que substituiu a escravidão, os recrutadores aliciavam de preferência analfabetos, forma de evitar o protesto social, o analfabetismo como um fator de sujeição do trabalhador do eito. A cultura moderna e a cultura tradicional se encontram na mentalidade para a qual ser alfabetizado não é necessariamente um desafio e uma carência. O êxito econômico e político de milhares de semialfabetizados parece proclamar todos os dias que aprender a ler e escrever é cansativo. Como dizia o Jeca Tatu, de Lobato: não paga a pena.

terça-feira, 28 de julho de 2009

Dica de leitura

O romance Na praia de Ian McEwan se passa na Inglaterra de 1962. As profundas mudanças na moral e no comportamento sexual que abalariam o mundo ao longo daquela década ainda estão em estado de gestação. Edward Mayhew e Florence Ponting, ambos virgens, se instalam num hotel na praia de Chesil, perto do Canal da Mancha, para celebrar sua noite de núpcias. Ele é um rapaz recém-formado em história, de origem provinciana; sua mãe tem problemas mentais, e o pai é professor secundário. A noiva é uma violinista promissora, líder de seu próprio quarteto de cordas, filha de um industrial e de uma professora universitária de Oxford.
O desajeitado encontro íntimo desses dois jovens ainda marcados pelos resquícios da repressiva moral vitoriana é repleto de lances cômicos e comoventes, configurando uma autêntica tragicomédia de erros. Na praia, entretanto, vai além disso. Por conta da refinada arte narrativa de Ian McEwan, o drama dos recém-casados transcende o registro particular e o retrato de época para alcançar a dimensão de uma obra universal sobre o momento da perda da inocência, essa expulsão do paraíso que é um ponto de inflexão na vida de todo indivíduo.

Com sua prosa precisa, tão sutil quanto implacável, McEwan alterna os pontos de vista de Edward e Florence, radiografando seus pensamentos e motivações mais secretos. O sentimento trágico que fica no leitor vem da percepção dos estragos profundos e duradouros que um pequeno gesto, um único mal-entendido, uma palavra infeliz podem causar na vida dos personagens.

Com esse romance compacto, intenso, inteiriço como um poema ou uma peça musical, o autor confirma seu notável talento para captar e expressar os descaminhos da vida interior.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Perigos da literatura

Artigo de Daniel Piza publicado em O Estado de S. Paulo de 01/02/2009.

Não é só nos debates políticos e econômicos que o sessentismo anda em baixa. Leia A Literatura em Perigo (Difel), um pequeno e despretensioso livro de Tzvetan Todorov. Que um dos expoentes do estruturalismo, discípulo de Roland Barthes, se revolte contra as teorias literárias ainda dominantes entre professores e críticos, sobretudo na França, é fato a saudar. Todorov já não suporta a análise da literatura como se ela fosse desconectada da vida, dos temas da condição humana, uma análise que a reduz a jogos de linguagem. Para os defensores da “desconstrução”, nada existe além do texto, logo a literatura só fala de literatura. Esse solipsismo, diz Todorov, ignora o contexto humano – a posição ambivalente da estética, entre beleza e conhecimento – e reforça o declínio da literatura na sociedade, a pouca familiaridade dos jovens de hoje com as “sensações insubstituíveis” da leitura.


“Longe de ser um simples entretenimento, uma distração reservada às pessoas educadas”, escreve ele logo no início, a literatura “permite que cada um responda melhor à sua vocação de ser humano.” No final, define melhor a utilidade de uma obra literária, que “produz um tremor de sentidos, abala nosso aparelho de interpretação simbólica, desperta nossa capacidade de associação”. Ou seja, Todorov não está defendendo a importância da imaginação, a noção vulgar de que os livros servem para um escape da realidade ou um consolo à esperança; ele vê a ficção de um Shakespeare, Dostoiévski ou Proust como um instrumento de interpretação da realidade, da natureza humana, não superior ou inferior à ciência, mas autônomo e, talvez, complementar. Somos criados à base de medos e chavões, e nada como a literatura para nos dar armas de libertação. Nesse sentido, é sempre perigosa para o senso comum.

Todorov, porém, cai no dualismo de sua geração ao revelar no ensaio um ponto de vista quase diametralmente oposto ao que defendeu na juventude. (É como aqueles sujeitos marxistas que, diante do fracasso soviético, passaram a defender o capitalismo selvagem – às vezes chamado de “natural” – como se o mercado não tivesse de ser fiscalizado e canalizado.) Comete o erro de culpar o modernismo de Flaubert em diante, principalmente as vanguardas do início do século 20, por essa visão formal da literatura. Lembra o debate do autor de A Educação Sentimental com George Sand e dá a ela razão por se queixar do pessimismo do amigo. Bem, a maioria dos grandes escritores não assinou finais felizes por um motivo claro: eles estavam (e estão) reagindo justamente à tendência convencional de se iludir facilmente, de acreditar em qualquer crença ou doutrina que resolva sistematicamente os problemas do mundo. Agora me diga quem é mais lido hoje em dia: Flaubert ou George Sand?

***

É bobagem dizer que “ler demais faz mal”, como ouço às vezes. O problema não é a quantidade de leitura, mas o modo como ela é feita; se ela passa a tomar o lugar da vida, a substituir experiências reais em vez de iluminá-las, aí, sim, se pode falar na existência de um problema. Muitos intelectuais o encarnam, exemplos que são de falta de praticidade, atratividade e sensatez... Todorov se queixa de frases de literatos como “a verdadeira vida é a literatura” e “tudo existe para terminar num livro”, respectivamente aludindo a Borges e Mallarmé – frases que parecem negar os poderes de representação das artes. Estou com ele, como quando diz que os críticos de arte exaltam Malevitch e depreciam Bonnard apenas porque este é figurativo; mas aquelas frases também precisam ser vistas em seu contexto. Nem Borges nem Mallarmé fizeram “arte pela arte”, e Borges notou sempre como são pobres e mutiladas as palavras deixadas pelos séculos. A literatura deve renovar a linguagem corrente.

Ninguém como os escritores, afinal, nos alertam para os perigos da literatura. Quase todos os grandes personagens são leitores: Dom Quixote passa a delirar com a ideia do triunfo depois de ler romances de cavalaria, mas a realidade que encontra é tão diferente que ele só apanha, ainda que Sancho Pança lhe faça o contraponto; Hamlet lê o tempo todo, “palavras, palavras, palavras”, enquanto matuta um plano de ação que desmascare o poder; os terroristas de Dostoiévski e Conrad são leitores vorazes; Madame Bovary só encontra nos romances a ausência do tédio que lhe consome dias e noites; Dom Casmurro também absorveu sua dose de clássicos; Gustav Aschenbach vai a Veneza já afetado pelo vírus do idealismo que os livros inocularam; Artur Sammler sonha ser como um esteta inglês tão refinado que os males da metrópole não o atinjam. E autores como Elias Canetti (Auto-de-Fé) e Italo Svevo (A Consciência de Zeno) trataram diretamente do tema. Desconfiar das fantasias e teorias que os livros trazem é fundamental; para isso, é preciso ler muito.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Dicas culturais

Apresentamos algumas sugestões da programação cultural gratuita que a cidade de São Paulo oferece. Aproveite!


Teatro


Os reis preguiçosos
Direção: Gilles Rhode. Com: Transe Express. Duração: 90 min.
O espetáculo, que faz parte das comemorações do Ano da França no Brasil, será apresentado nos jardins do Parque da Independência pela companhia francesa de teatro de rua Transe Express. Mescla circo, dança e convida o público a acompanhar o cortejo de carros alegóricos por 3 diferentes caminhos.
Quando: Sábado (18/07) e domingo (19/07) às 18h30.
Onde: Parque da Independência - Av. Nazaré s/nº - Ipiranga. Tel.: 3340-2000.

O conto do reino distante
Texto: Simoni Boer. Concepção: Ana Luísa Lacombe. Direção: Paulo Rogério Lopes. Com: Ana Luísa Lacombe e Camila Bellodi. Duração: 50 min. Não recomendado para menores de 5 anos.
O Reino Distante aguarda o nascimento de um herdeiro, mas o bebê é trancafiado numa torre e só tem as formigas como companhia.
Quando: Domingo às 15h30. Até 29/07. Retirar ingresso com 1 hora de antecedência.
Onde: SESC Santana - Teatro - Av. Luiz Dumont Villares, 579 - Santana. Tel.: 2971-8700.

No papel da vítima
Texto: Irmãos Presnyakov. Direção: Ariela Goldmann. Com: Turma 50 da Escola de Arte Dramática da ECA/USP. Duração: 90 min. Não recomendado para menores de 14 anos.
Esta comédia dos dramaturgos russos acompanha as experiências de um rapaz que ganha a vida fazendo o papel de vítima em reconstituições de crimes.
Quando: Quarta-feira a sábado às 21h; Domingo às 20h. Até 02/08. Retirar ingresso com 1 hora de antecedência.
Onde: Teatro Laboratório ECA - Av. Prof. Luciano Gualberto, trav. J, 215 - Cidade Universitária. Tel.: 3091-4376.



Shows


Conjunto Retratos

Dedicado ao chorinho e à música regional, o grupo é a atração de julho do programa Banca do Choro, realizado dentro do Mercado Municipal.
Quando: 19/07 (domingo) às 11h30. 120 min.
Onde: Mercado Municipal - área de alimentação - piso térreo - R. da Cantareira, 306 - Centro. Tel.: 3313-2444.



Dança


Panorama Sesi de Dança 2009
O destaque do festival neste final de semana é Bruno Beltrão e Grupo de Rua, que apresentam H3.
Quando: Sábado (18/07) às 20h e domingo (19/07) às 19h. 60 min. Não recomendado para menores de 14 anos. Retirar ingresso no dia da apresentação a partir das 12h.
Onde: Centro Cultural Fiesp - Teatro Sesi São Paulo - Av. Paulista, 1313 - Bela Vista. Tel.: 3146-7405.

Jam de Dança
Neste mês, participam do projeto a pesquisadora em dança e cultura popular Andrea Soares e os músicos Mateus Prado e Cristiano Meireles, que convidam a um diálogo corporal com as danças populares.
Quando: Terça-feira às 12h. Até 28/07. 90 min.
Onde: Centro Cultural São Paulo - Espaço Flávio Império - R. Vergueiro, 1000 - Liberdade. Tel.: 3397-4002.



Concertos



Novo Ovo Novo

O grupo apresenta músicas medievais e renascentistas, especialmente da Península Ibérica, e interpreta, tambpem, algumas peças coloniais da América do Sul.
Quando: Domingo às 13h30. 75 min.
Onde: SESC Vila Mariana - Praça de eventos - Rua Pelotas, 141 - Vila Mariana. Tel
.: 5080-3000.

Música em cena
Sob a regência de João Carlos Martins, a Orquestra Bachiana Jovem participa do projeto Música em cena. O programa terá peças de Mascagni, Beethoven, Mozart, Morricone e Piazzolla.
Quando: Domingo às 12h. 60 min. Até dezembro. Retirar ingresso na data de apresentação.
Onde: Centro Cultural FIESP - Teatro SESI São Paulo - Av. Paulista, 1313 - Bela Vista. Tel
.: 3146-7405.



Exposições


Ícone e memória
A exposição revê os 96 anos de história do Teatro Municipal por meio de painéis explicativos, fotos de artistas, maquetes de cenários e adereços.
Quando: Terça-feira a domingo das 10h às 16h30.
Onde: Museu do Teatro Municipal - Pça. Ramos de Azevedo, baixos do Viaduto do Chá - República. Tel.: 3241-3815.

Cuide de você - Sophie Calle

A francesa convidou 107 mulheres de diferentes profissões para interpretarem o e-mail que recebeu do ex-namorado, no qual ele pôs fim ao relacionamento. O processo resultou em uma mostra híbrida, com desenhos, registros de perfomances, textos e vídeos.
Quando: Terça-feira a sábado das 10h às 21h; domingo das 10h às 20h. Até 7/09.
Onde: SESC Pompéia - R. Clélia, 93 - Água Branca. Tel.: 3871-7700.

Amilcar de Castro e Willys de Castro
Com a curadoria de Lorenzo Mammi, estão expostos 340 objetos, entre estudos de logotipos, revistas, maquetes e vestidos, além de pinturas e esculturas produzidos pelos dois artistas.
Quando: Terça-feira a sábado das 10h às 18h; Domingo das 12h às 17h. Até 02/08.
Onde: Instituto de Arte Contemporânea (IAC) - R. Maria Antônia, 258 - Vila Buarque. Tel.: 3255-2009.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Dica de leitura


Em Ela é carioca, o jornalista Ruy Castro traça, por meio de 231 verbetes, um fascinante e curioso retrato de Ipanema, o irriquieto bairro carioca que ficou mundialmente famoso por ter sido o berço de gerações inteiras de artistas, intelectuais e libertários como Tom Jobim, Arnaldo Jabor e Leila Diniz.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Harry Potter e os livros

Às vésperas do lançamento de mais um filme de Harry Potter, é oportuno postar esse artigo de Luis Fernando Veríssimo publicado em O Estado de S. Paulo de 26/07/2007.

Calor bom na barriga

Pertenço a várias minorias (como a dos sem-celular, por exemplo) mas a menor delas é a dos ignorantes em Harry Potter. Não li os livros, não vi os filmes, não sei quem são os personagens e quais são os seus poderes - minha ignorância é completa e, a esta altura, irreversível. Alguns me dizem que não vale a pena tentar remediá-la para pelo menos poder entender tanto entusiasmo, porque no fundo é muito barulho por nada. Outros me asseguram que não sei o que estou perdendo. Seja como for, não deixa de dar um calor bom na barriga o espetáculo de crianças invadindo livrarias em hordas para não perder o lançamento de um livro. Não um videogame ou um robô que se transforma em canhão, mas um livro. E dos grandes.

Mesmo que Harry Potter seja, hoje, menos um fenômeno literário do que um fenômeno de marquetchim - não são apenas os livros e os filmes que fazem sucesso, o sucesso deles faz ainda mais sucesso - o fato é que as crianças estão invadindo as livrarias. Nós que gostamos de livros deveríamos torcer pelo livro sempre. Qualquer livro, não importa gênero ou conteúdo. Livros vendidos significam livrarias satisfeitas, editoras faturando, escritores sobrevivendo e - quem sabe? - compradores do Paulo Coelho tropeçando, na saída, num Rubem Fonseca ou num Moacyr Scliar e decidindo levá-los também. O Paulo Coelho é outro exemplo de fenômeno, literário ou extraliterário, que merece aplauso. Você não precisa ler o que ele escreve para sentir um assomo de orgulho, do chamado ufanismo irrefletido, ao entrar em qualquer grande livraria do mundo e dar com uma estante inteira dedicada só a, que diabo, um escritor brasileiro.

O 'best-seller' leva gente para as livrarias, o que é ótimo. Outra questão é se ele rouba espaço de literatura menos badalável nas livrarias e nas editoras, como as grandes produções de cinema americanas tiram o ar dos concorrentes no mercado brasileiro. Livros como os do Harry Potter equivaleriam aos filmes arrasa-quarteirões que não deixam nada para os outros. Mas não sei se o paralelo cabe. As pessoas não ficam no cinema para ver o filme brasileiro depois de ver o superlançamento americano, mas há a esperança que alguns da multidão que foi comprar o último Harry Potter fiquem na livraria, ou voltem para comprar outros livros. E o sucesso de vendas de um livro permite à indústria editorial investir em mau-sellers - uma relação que não existe entre os sucessos de Hollywood e o cambaleante cinema brasileiro.

No fim fica só um ressentimento com Harry Potter: que ainda não exista uma brasileira ou um brasileiro capaz de atrair hordas de crianças para dentro de livrarias como a sua autora. Ainda não se descobriu a mágica.

sábado, 11 de julho de 2009

Manifesto por um Brasil literário

Por Bartolomeu Campos de Queirós, apresentado durante a FLIP (Feira Literária Internacional de Paraty).

O Instituto C&A, se somando às proposições da Associação Casa Azul – organizadora da Festa Literária Internacional de Paraty -, à Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, ao Instituto Ecofuturo e ao Centro de Cultura Luiz Freire, manifesta sua intenção de concorrer para fazer do País uma sociedade leitora. Reconhecendo o êxito já conferido, nacional e internacionalmente à FLIP, o projeto busca estender às comunidades, atividades mobilizadoras que promovam o exercício da leitura literária.

Reconhecemos como princípio, o direito de todos de participarem da produção também literária. No mundo atual, considera-se a alfabetização como um bem e um direito. Isto se deve ao fato de que com a industrialização as profissões exigem que o trabalhador saiba ler. No passado, os ofícios e ocupações eram transmitidos de pai para filho, sem interferência da escola.


Alfabetizar-se, saber ler e escrever tornaram-se hoje condições imprescindíveis à profissionalização e ao emprego. A escola é um espaço necessário para instrumentalizar o sujeito e facilitar seu ingresso no trabalho. Mas pelo avanço das ciências humanas compreende-se como inerente aos homens e mulheres a necessidade de manifestar e dar corpo às suas capacidades inventivas.

Por outro lado, existe um uso não tão pragmático de escrita e leitura. Numa época em que a oralidade perdeu, em parte, sua força, já não nos postamos diante de narrativas que falavam através da ficção de conteúdos sapienciais, éticos, imaginativos.

É no mundo possível da ficção que o homem se encontra realmente livre para pensar, configurar alternativas, deixar agir a fantasia. Na literatura que, liberto do agir prático e da necessidade, o sujeito viaja por outro mundo possível. Sem preconceitos em sua construção, daí sua possibilidade intrínseca de inclusão, a literatura nos acolhe sem ignorar nossa incompletude.

É o que a literatura oferece e abre a todo aquele que deseja entregar-se à fantasia. Democratiza-se assim o poder de criar, imaginar, recriar, romper o limite do provável. Sua fundação reflexiva possibilita ao leitor dobrar-se sobre si mesmo e estabelecer uma prosa entre o real e o idealizado.


A leitura literária é um direito de todos e que ainda não está escrito. O sujeito anseia por conhecimentos e possui a necessidade de estender suas intuições criadoras aos espaços em que convive.

Compreendendo a literatura como capaz de abrir um diálogo subjetivo entre o leitor e a obra, entre o vivido e o sonhado, entre o conhecido e o ainda por conhecer; considerando que este diálogo das diferenças – inerente à literatura – nos confirma como redes de relações; reconhecendo que a maleabilidade do pensamento concorre para a construção de novos desafios para a sociedade; afirmando que a literatura, pela sua configuração, acolhe a todos e concorre para o exercício de um pensamento crítico, ágil e inventivo; compreendendo que a metáfora literária abriga as experiências do leitor e não ignora suas singularidades, que as instituições em pauta confirmam como essencial para o País a concretização de tal projeto.

Outorgando a si mesmo o privilégio de idealizar outro cotidiano em liberdade, e movido pela intimidade maior de sua fantasia, um conhecimento mais amplo e diverso do mundo ganha corpo, e se instala no desejo dos hímens e mulheres promovendo os indivíduos a sujeitos e responsáveis pela sua própria humanidade. De consumidores passa-se a investidores na artesania do mundo. Por ser assim, persegue-se uma sociedade em que a qualidade da existência humana é buscada como um bem inalienável.

Liberdade, espontaneidade, afetividade e fantasia são elementos que fundam a infância. Tais substâncias são também pertinentes à construção literária. Daí, a literatura ser próxima da criança.

Possibilitar aos mais jovens acesso ao texto literário é garantir a presença de tais elementos – que inauguram a vida – como essenciais para o seu crescimento. Nesse sentido é indispensável a presença da literatura em todos os espaços por onde circula a infância. Todas as atividades que têm a literatura como objeto central serão promovidas para fazer do País uma sociedade leitora. O apoio de todos que assim compreendem a função literária, a proposição é indispensável.

Se é um projeto literário é também uma ação política por sonhar um País mais digno.

Para saber mais, acesse www.brasilliterario.org.br

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Por prazer, não por dever

Artigo de Zuenir Ventura, publicado em O Globo em 01/07/2009.

Os eventos literários como feiras, salões e bienais não vão sozinhos resolver esse problema, evidentemente. Mas associando o livro a um clima festivo (basta ver como as crianças nesses espaços o dessacralizam, transformando-o em brincadeira), eles contribuem pelo menos para mostrar que a leitura pode ser um prazer, mais que um dever.


As feiras de livros são uma saudável febre que está se alastrando pelo país como uma espécie de gripe do bem. São poucas as capitais ou cidades médias — e até pequenas — que não promovem a sua uma vez por ano. Agora mesmo, eu, que sou um feirante tão assíduo quanto Veríssimo, Carlos Heitor Cony e Fernando Moraes, acabo de vir de uma em Ribeirão Preto e já vou para outra em Paraty. A de São Paulo é a segunda maior a céu aberto do Brasil e uma das mais democráticas: é toda de graça; a outra, mais internacional e elitista, cobra ingresso para as palestras e é visitada por 30 mil pessoas. Aquela tem nove anos e esta, sete. Estive na primeira edição das duas, e pude acompanhar a evolução delas.

A de Ribeirão cresceu tanto que hoje é o principal evento cultural da cidade, atraindo em onze dias mais de 400 mil visitantes que se espremeram em 16 mil metros quadrados e entre mais de 70 estandes de livros. Misturando literatura e música, espetáculos e mesas redondas, a 9ª Feira ofereceu ao público cerca de 600 manifestações artísticas. De autores, compareceram Thiago de Melo, Moacyr Scliar, Milton Hatoum, Marina Colasanti, Laurentino Gomes, Marçal Aquino, José Miguel Wisnik, Muniz Sodré e mais cem outros.

À noite, de 20 mil a 30 mil pessoas se aglomeravam na praça principal para assistir aos shows. Foram 60 — de Paulinho da Viola, Adriana Calcanhoto, João Bosco, Toquinho e MPB-4, Vanessa da Mata, Maria Rita, Lenine, entre outros. No gênero, é certamente a maior oferta de atrações extraliterárias que existe. Conhecida até agora pela monocultura da cana de açúcar, Ribeirão Preto periga tornar-se famosa pela cultura dos livros.

Em um levantamento que acaba de realizar sobre os maiores eventos literários do país, a revista Exame concluiu que o mercado editorial e o número de leitores vêm crescendo. Em 2000 eram 26 milhões e já em 2007, mais de 60 milhões. Apesar do crescimento, porém, o Brasil ainda lê pouco, menos até do que a Colômbia, por exemplo, onde cada pessoa lê 2,4 livros não didáticos por ano, enquanto no Brasil apenas um pouco mais de um livro (1,3) é lido por pessoa. Nos EUA, o índice chega a 5,1 e na França, a invejáveis 7 exemplares.

Os eventos literários como feiras, salões e bienais não vão sozinhos resolver esse problema, evidentemente. Mas associando o livro a um clima festivo (basta ver como as crianças nesses espaços o dessacralizam, transformando-o em brincadeira), eles contribuem pelo menos para mostrar que a leitura pode ser um prazer, mais que um dever.

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Dicas culturais

Apresentamos algumas sugestões da programação cultural gratuita que a cidade de São Paulo oferece. Aproveite!


Teatro


O conto do reino distante
Texto: Simoni Boer. Concepção: Ana Luísa Lacombe. Direção: Paulo Rogério Lopes. Com: Ana Luísa Lacombe e Camila Bellodi. Duração: 50 min. Não recomendado para menores de 5 anos.
O Reino Distante aguarda o nascimento de um herdeiro, mas o bebê é trancafiado numa torre e só tem as formigas como companhia.
Quando: Domingo às 15h30. Até 29/07. Retirar ingresso com 1 hora de antecedência.
Onde: SESC Santana - Teatro - Av. Luiz Dumont Villares, 579 - Santana. Tel.: 2971-8700.

No papel da vítima
Texto: Irmãos Presnyakov. Direção: Ariela Goldmann. Com: Turma 50 da Escola de Arte Dramática da ECA/USP. Duração: 90 min. Não recomendado para menores de 14 anos.
Esta comédia dos dramaturgos russos acompanha as experiências de um rapaz que ganha a vida fazendo o papel de vítima em reconstituições de crimes.
Quando: Quarta-feira a sábado às 21h; Domingo às 20h. Estreia 08/07. Até 02/08. Retirar ingresso com 1 hora de antecedência.
Onde: Teatro Laboratório ECA - Av. Prof. Luciano Gualberto, trav. J, 215 - Cidade Universitária. Tel.: 3091-4376.



Shows


Ed Motta e Guilherme Ribeiro

O pianista Guilherme Ribeiro faz o concerto de abertura na retomada do projeto Piano na Praça, cuja principal atração desta vez é o músico Ed Motta.
Quando: 04/07 (sábado) às 15h. 60 min.
Onde: Pça. Dom José Gaspar - República. Tel.: 3397-0160.



Dança


Jam de Dança
Neste mês, participam do projeto a pesquisadora em dança e cultura popular Andrea Soares e os músicos Mateus Prado e Cristiano Meireles, que convidam a um diálogo corporal com as danças populares.
Quando: Terça-feira às 12h. Até 28/07. 90 min.
Onde: Centro Cultural São Paulo - Espaço Flávio Império - R. Vergueiro, 1000 - Liberdade. Tel.: 3397-4002.



Concertos



Música em cena

Sob a regência de João Carlos Martins, a Orquestra Bachiana Jovem participa do projeto Música em cena. O programa terá peças de Mascagni, Beethoven, Mozart, Morricone e Piazzolla.
Quando: Domingo às 12h. 60 min. Até dezembro. Retirar ingresso na data de apresentação.
Onde: Centro Cultural FIESP - Teatro SESI São Paulo - Av. Paulista, 1313 - Bela Vista. Tel
.: 3146-7405.



Exposições


Ícone e memória
A exposição revê os 96 anos de história do Teatro Municipal por meio de painéis explicativos, fotos de artistas, maquetes de cenários e adereços.
Quando: Terça-feira a domingo das 10h às 16h30.
Onde: Museu do Teatro Municipal - Pça. Ramos de Azevedo, baixos do Viaduto do Chá - República. Tel.: 3241-3815.

Fotografia em Revista

Com trabalhos fotográficos de Araquém Alcântara, Otto Stupakoff e German Lorca, reúne uma amostra das imagens mais emblemáticas já publicadas em revistas da editora Abril.
Quando: Terça-feira a sexta feira das 10h às 20h; Sábado e domingo das 13h às 17h. Até 12/07. Não recomendado para menores de 16 anos.
Onde: FAAP - R. Alagoas, 903 - Higienópolis. Tel.: 3662-7233.

Amilcar de Castro e Willys de Castro
Com a curadoria de Lorenzo Mammi, estão expostos 340 objetos, entre estudos de logotipos, revistas, maquetes e vestidos, além de pinturas e esculturas produzidos pelos dois artistas.
Quando: Terça-feira a sábado das 10h às 18h; Domingo das 12h às 17h. Até 02/08.
Onde: Instituto de Arte Contemporânea (IAC) - R. Maria Antônia, 258 - Vila Buarque. Tel.: 3255-2009.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Dica de leitura

Em Travessuras da menina má, de Mario Vargas Llosa, o peruano Ricardo vê realizado, ainda jovem, o sonho que sempre alimentou - o de viver em Paris. O reencontro com um amor da adolescência o trará de volta à realidade. Lily - inconformista, aventureira e pragmática - o arrastará para fora do pequeno mundo de suas ambições. Ricardo e Lily - ela sempre mudando de nome e de marido - se reencontram várias vezes ao longo da vida, em diferentes cidades do mundo que foram cenários de momentos emblemáticos da História contemporânea. Na Paris revolucionária dos anos 60; na Londres das drogas, da cultura hippie e do amor livre dos anos 70; na Tóquio dos grandes mafiosos dos anos 80; e na Madri em transição política dos anos 90. Assim, ao mesmo tempo em que conta a história de um amor arrebatador, o livro traça um quadro vigoroso das transformações sociais européias e convulsões políticas da América Latina. Muitas das experiências de vida de Vargas Llosa aparecem aqui, por meio de seus personagens - os tempos de penúria em Paris, seu trabalho como tradutor, sua simpatia pela revolução cubana e a ligação permanente com seu país de origem, o Peru. Criando uma tensão entre o cômico e o trágico, numa narrativa ágil, vigorosa e terna, que conduz o leitor nesta dança de encontros e desencontros, Mario Vargas Llosa joga com a realidade e a ficção para contar uma história em que o amor se mostra indefinível, senhor de mil faces, como a menina deliciosa e má.